Sociologia e Antropologia da moral
O embrião deste seminário, que se pretende bienal no futuro, remonta ao grupo Sociologia e Antropologia da Moral, estabelecido inicialmente nos encontros anuais da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (Anpocs). Criado originalmente em 2010 e desde então ativo no encontro (seja como Seminário Temático, Grupo de Trabalho, Simpósio de Pesquisa Pós-Graduada e/ou Mesa Redonda) e fora dele (especialmente em encontros menores e bancas), o grupo, em suas várias modalidades, tem empreendido o trabalho de estabelecer um debate sobre as possibilidades de a moral e a moralidade serem objeto de estudo pelas ciências sociais, especialmente no Brasil. Ao longo desse período, consolidou-se toda uma nova agenda de discussões sobre como diferentes dimensões da vida social podem ser lidas sob a ótica da moralidade ou de questões de ordem moral, no sentido amplo do termo, e de maneira dissociada de perspectivas moralistas ou normativistas, orientadas por parâmetros predefinidos sobre a moral e o dever ser.
E essa atenção é dada tanto na sociologia e na antropologia (que cada vez mais relativizam objetos vistos como naturalizadamente negativos, como ocorre, por exemplo, no horizonte de correntes ditas “críticas”) quanto pela sociedade de maneira geral, sobretudo por meio do interesse midiático e por esses temas não apenas ocuparem as atenções de debates de políticas públicas (como em estudos ligados à questão da “segurança pública”, da “igualdade” ou da “universalização de direitos”) como também desempenharem papel central nas diferentes cruzadas que têm caracterizado a atual conjuntura política nacional. Desse modo, propomos acolher no evento abordagens suficientemente abertas para apreender visões e orientações para a ação diversas, sem abrir mão do esforço em compreender seus sentidos e justificativas ou seus esforços de legitimação. É, dessa maneira, um convite especialmente a sociólogos e antropólogos para um passo no grau de abstração por meio de uma abordagem compreensiva. Em suma: o desafio do seminário é reunir trabalhos que se provoquem a problematizar a moral.
Notadamente, o surgimento de uma “nova sociologia da moralidade” no mundo anglo-saxônico, de uma “sociologia da crítica” e de uma abordagem “antiutilitarista” a partir da dádiva na França, das discussões sobre reconhecimento implementadas pelas novas gerações da teoria crítica e de uma “antropologia das questões humanitárias” e da "virada ética" no campo antropológico, além de uma nova historiografia dos direitos humanos e do retorno do tema clássico dos problemas públicos, vêm movimentando as ciências sociais com novas abordagens para esse tema.
No Brasil, o tema igualmente trilha um movimento pendular entre ser tratado como componente de outras temáticas e ser visto como operador fundamental da análise nas ciências sociais. Nesse sentido, os trabalhos, na teoria antropológica, de, primeiramente, Roberto Cardoso de Oliveira e, em seguida, Luís Roberto Cardoso de Oliveira são referência fundamental, no que diz respeito a sua fecundidade tanto na antropologia da política quanto na antropologia do direito e das demandas por direitos, assim como as abordagens sociológicas sobre o crime e a violência inspiradas na rotulação e que passaram a se dedicar a como os atores sociais são construídos e estigmatizados socialmente, em especial como sujeitos criminais. Uma revisão bibliográfica ampla dos empreendimentos para a construção de uma área de estudos compreensiva da moral não caberia aqui, mas a publicação transacional de The Anthropology of Moralities (2009), organizada por Monica Heintz; o lançamento do Handbook of the Sociology of Morality (2010), nos EUA, compilado por Steven Hitlin e Stephen Vaisey; e, no Brasil, a chegada de Pensando bem: Estudos de sociologia e antropologia da moral (2014), com organização de Luis Riberto Cardoso de Oliveira e Alexandre Werneck (2014), além dos dossiês publicados na Revista Brasileira de Sociologia da Emoção e na revista Sociologias, são todos diagnósticos da potencialidade realizada na área.
Em todos esses casos, fica explicitada e sublinhada a percepção da centralidade da moral nos trabalhos não mais como tema acessório, mas como questão central, em trabalhos de uma multiplicidade empírica gigantesca. Desse modo, temos proposto uma antropologia e uma sociologia da moral e das moralidades compreensivas e de forma isolada de movimentos de uma disciplina moral. Da mesma forma, também gostaríamos de evitar abordagens meramente descritivas, conformadas por um relativismo acrítico, que privilegiem a perspectiva do observador externo, e que não se engajem no esforço de compreensão das prestações de conta dos atores, que operam para conferir sentido a suas práticas e sustentação a suas pretensões de legitimidade e efetividade, seja a partir de uma abordagem notadamente sociológica, seja de uma leitura antropológica, seja em uma inflexão analítica mista das duas disciplinas.
No que concerne à temática mais ampla do seminário, procurar-se-á contemplar tanto pesquisas voltadas para a compreensão das ideias de correção normativa e noções de justiça e outros elementos de sustentação de direcionamento do bem, como aquelas que privilegiam o estudo dos ideais do bem viver ou da “vida boa”. Interrogações analíticas em torno de como atores e coletivos diversos concreta e diariamente configuram princípios avaliativos e a compreensão de seus sentidos e efeitos na produção da vida política e social são de grande interesse.
Quer-se, então, dar conta de uma série ampla de pesquisas, privilegiando formas de ultrapassar a dicotomia entre abordagens preocupadas com o correto ou justo, de um lado, e aquelas preocupadas com o bom, de outro. Na mesma direção, seria interessante explorar e refletir sobre situações nas quais os atores confrontassem moralidades distintas, ou nas quais se engajassem em conflitos que ressaltassem visões diversas sobre as dimensões normativa e valorativa da eticidade e das várias formas situadas de moralidade. Além disso, serão elementos de destaque trabalhos analisando modos e práticas de engajamento moral e seus fundamentos e repercussões, bem como os dilemas e possíveis tensões implicadas na sua constituição e na produção de âmbitos diversos em que atuam, como políticas, movimentos sociais, atuações profissionais etc. Assim, o seminário se propõe a servir de convite a pesquisadores de vários países, sob várias orientações teóricas, para lançarem luz sobre as questões morais e consolidar esta área cada vez mais fundamental em nossos tempos desafiadores.